Ex-ministros da Educação e da Justiça se unem contra planos de Bolsonaro
Antecessores de Moro, de Governos de siglas distintas, alertam para o retrocesso que representa o decreto que libera o porte de armas. Os que precederam Weintraub expressam preocupação com Fundeb e autonomia universitária
São Paulo
Não são poucas as vozes que pedem uma frente democrática suprapartidária para conter o que consideram ser ameaças à democracia promovidas pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL). Diante da inação dos partidos e lideranças políticas, ex-ministros de vários Governos e vários espectros políticos vêm se unindo para alertar sobre o desmonte institucional e de políticas públicas em suas áreas. Nesta terça-feira foi a vez de onze encarregados da pasta de Justiça e seis da pasta de Educação. Os primeiros publicaram uma carta aberta na Folha de S. Paulo defendendo o controle de armas e munições e alertando para os "retrocessos" que o decreto assinado no dia 7 de maio, que facilita a compra e o porte nas ruas para diversas categorias, representa. Já os últimos se reuniram na Universidade de São Paulo (USP) de manhã e assinaram um comunicado no qual expressam preocupações urgentes, como a renovação do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) em 2020 e a escalada retórica contra as liberdades e a autonomia universitária. Há cerca de um mês, oito ex-ministros do Meio Ambiente também se reuniram na USP para denunciar o desmonte promovido na área
Os ex-ministros da Educação José Goldemberg (1991-1992), Fernando Haddad (2005-2012), Renato Janine (2015), Murilio Hingel (1992-1995), Cristovam Buarque (2003-2004) e Aloizio Mercadante (2015-2016). SEBASTIÃO MOREIRA EFE
Os autores da carta na Folha são Aloysio Nunes Ferreira, Eugênio Aragão, José Carlos Dias, José Eduardo Cardozo, José Gregori, Luiz Paulo Barreto, Miguel Reale Jr., Milton Seligman, Raul Jungmann, Tarso Genro e Torquato Jardim. Muitos estão vinculados a partidos adversários, como o PT e o PSDB, e formaram parte dos últimos quatro Governos: Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), Dilma Rousseff (2011-2016) e Michel Temer (2016-2018). Para que se tenha dimensão dessa união, Reale Jr. foi um dos autores do pedido de impeachment de Rousseff, que tinha Cardozo como ministro Justiça, substituído em seguida por Jungmann na gestão Temer. Apesar de suas diferenças ideológicas e atritos recentes, decidiram destacar seus pontos em comum: "Cada um de nós trabalhou para que fosse estabelecida no país uma política de regulação responsável de armas e munições", escreveram. "Independentemente dos partidos que estavam no poder e da orientação dos governos dos quais fazíamos parte, nosso compromisso sempre foi o de fortalecer avanços que consolidassem o Brasil como uma referência de regulação responsável de armas e munições para a América Latina e para o mundo", acrescentaram mais adiante.
Os ex-ministros, responsáveis pela área de Segurança Pública, explicaram que "a efetividade das políticas públicas depende de sua continuidade, monitoramento e avaliação constantes para que possamos aperfeiçoá-las e dar respostas a seus novos desafios". Eles acreditam que "o controle de armas e munições no Brasil é uma agenda central para o enfrentamento do crime organizado e para a redução dos homicídios", cujos índices continuam altíssimos mesmo com as políticas públicas vigentes —foram cerca de 64.000 em 2017. Por isso, demandam o "fortalecimento" dessas políticas postas em prática ao longo das últimas duas décadas, impedindo o que consideram ser "retrocessos".
Ao longo da campanha eleitoral de 2018, o então candidato Bolsonaro prometeu reiteradas vezes que seu Governo acabaria com o Estatuto do Desarmamento, aprovado pelo Congresso Nacional em 2003. A legislação proíbe que civis circulem com armas e munições pelas ruas e estabelece normas e restrições para a posse em casa, além de estabelecer mecanismos de controle de produção, circulação e comercialização. "De acordo com o Mapa da Violência, na década seguinte à sua aprovação, o Estatuto do Desarmamento ajudou a salvar a vida de cerca de 133.000 brasileiros", escreveram. "Apesar desses avanços, agora se articula o desmantelamento de uma lei largamente discutida, democraticamente votada e universalmente executada por diferentes governos", alertaram.
Eles terminam a carta fazendo um apelo. "Como ex-ministros e cidadãos, estamos convencidos de que ampliar o acesso às armas e o número de cidadãos armados nas ruas, propostas centrais dos decretos publicados pelo Executivo federal, não é a solução para a garantia de nossa segurança, de nosso desenvolvimento e de nossa democracia", argumentaram. "Ao invés de flexibilizar os principais pilares do controle de armas e munições de nosso país, precisamos proteger o legado das conquistas que protagonizamos e concentrar nossos esforços na função primordial do Estado: garantir o direito à vida e a segurança para todos", finalizaram.
Unidos pela Educação
Diante dos duros contingenciamentos —que podem se tornar cortes irreversíveis— na Educação e a escalada retórica contra professores e universidades, tida como uma ameaça a autonomia pedagógica e universitária, seis ex-ministros se reuniram também nesta terça para lançar um comunicado em conjunto. "O Brasil perdeu todo o século XX na educação, que o Constituinte colocou no alto das prioridades. E os indicadores começaram a mudar para melhor. O que exige da nossa parte um compromisso com as políticas de Estado construidas nos últimos 30 anos", afirmou Fernando Haddad (PT), que dirigiu a pasta de Educação entre 2005 e 2012 durante os Governos Lula e Dilma Rousseff.
Além do petista, adversário de Bolsonaro nas últimas eleições, estiveram presentes José Goldemberg (Governo Fernando Collor), Murílio Hingel (Governo Itamar Franco), Cristovam Buarque (Governo Lula), Aloizio Mercadante e Renato Janine Ribeiro (os dois últimos do Governo Dilma). O ministro Paulo Renato Souza (PSDB), que ocupou o ministério durante o Governo FHC, morreu em 2011, mas a frente de ex-ministros contou com a colaboração de auxiliares do tucano na elaboração do comunicado. José Mendonça Bezerra Filho (DEM), que foi ministro do Governo Temer, declinou o convite, enquanto que Rossieli Soares, seu sucessor na pasta ainda na gestão do emedebista, não foi chamado por ocupar a secretaria de Educação do governo paulista de João Doria —o que poderia comprometer suas relações com o Ministério da Educação (MEC). Outros ocupantes da pasta, como Tarso Genro e Henrique Paim, foram acionados e não puderam comparecer ou não responderam.
Assim como os ex-ministros da Justiça, destacaram seus pontos em comum. "Somos pessoas com divergências, mas construímos o consenso diante da importância da educação. Um consenso que abrange direita, esquerda, organizações, sindicatos, municípios e estados", destacou Janine Ribeiro. "Sentimos uma ameaça nessa marcha que foi feita nessas décadas, embora mais devagar do que gostaríamos, com o risco à autonomia universitária, ao risco financiamento da educação de base nos estados... O que esta acontecendo é muito pior do que imaginávamos", alertou Buarque. "Estamos tentando dar nossa contribuição para que essa marcha não seja interrompida, mas, sim, acelerada", concluiu.
Os seis ex-ministros anunciaram a criação de um Observatório da Educação brasileira para dialogar com organizações, secretários municipais e estaduais e reitores sobre os desafios e ameaças de desmonte promovidas pelo Governo Bolsonaro. Asseguram que também estão abertos ao debate com o MEC, hoje gerido por Abrahaim Wintraub. Entre suas preocupações mais urgentes, destacaram a expiração do Fundeb em 2020, um fundo nacional que financia a educação básica nos estados e municípios e ajuda a promover uma política de valorização dos professores. Criado por FHC 1996 e renovado por Lula em 2006, deverá ser renovado a partir do ano que vem. Mas até o momento o Governo Bolsonaro não deu sinais de como isso será feito. "O Fundeb é um sonho acalentado por décadas pelos educadores brasileiros, que sempre defenderam a criação de um fundo nacional que garantisse um investimento mínimo por aluno não importando seu local de nascimento", explicou Haddad. Já Mercadante defendeu que no "Plano Nacional de Educação estão as principais metas e estratégias, uma bússola que mesmo em tempestade econômica deve ser preservada".
Outra preocupação urgente diz respeito à autonomia de professores e universidades. Bolsonaro ganhou as eleições denunciando uma suposta doutrinação marxista em colégios e centros de ensino superior, além da promoção do que chama "ideologia de gênero". Sua incendiária retórica continua a mesma, e Wintraub chegou a anunciar que cortaria recursos das instituições que promovem "balbúrdia" em seu campus. Contra esses cortes e discursos, milhares de estudantes e professores ocuparam as ruas de centenas de cidades nos dias 15 e 30 de maio.
"Quando Bolsonaro disse que queria regredir em 50 anos nos costumes, de alguma forma ele responsabilizou a Educação por essa imoralidade, que nós chamamos de liberdade", explicou Janine Ribeiro. "Viver com diversidade é da natureza da universidade. Tenho a impressão que esses ataques que vêm sendo feitos são mal dirigidos. Temos experiências de professores de direito que foram braço do regime militar", argumentou por sua vez Goldemberg, que foi reitor da USP nos anos 80.
As ideias do Governo para a área estão voltadas para a regulamentação do homeschooling—ensino feito em casa pelos pais—, combate a "ideologia de gênero" e a implantação do projeto Escola Sem Partido, que promete eliminar uma suposta doutrinação dentro da sala de aula —seus críticos apontam para a perseguição de professores e alunos. "A qualidade no Ensino Fundamental sempre melhorou. E no Ensino Médio também, ainda que menos. Se tiramos o foco disso, da aprendizagem, vamos piorar de novo. A escola vai perder a centralidade no processo do ensino", destacou Haddad. Os seis ex-ministros ainda aproveitaram a ocasião para defender Paulo Freire, patrono da educação brasileira. Sua obra é reconhecida internacionalmente e estudada nas mais importantes do mundo. Contudo, virou alvo de Bolsonaro, que promete extirpar o educador das escolas. "Ele é inconveniente porque fazia a associação entre alfabetização e uma ideia de conscientização e descoberta de que todos são iguais e têm que ter oportunidades, enquanto outros sistemas podem limitar essa proposição", destacou Hingel.
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