Documento da Vale calcula que alerta poderia ter salvado mais de 150 vidas em Brumadinho
Relatório interno da mineradora em 2018 diz que, se alerta funcionasse, vítimas fatais poderiam ter sido reduzidas a menos de dez. Empresa diz que não existe estudo com "qualquer menção a risco de colapso iminente" na mina
São Paulo
Barragem I da Mina do Feijão, que rompeu em Brumadinho WASHINGTON ALVES REUTERS
Se o sistema de alerta à população tivesse funcionado quando a Barragem I da Vale estava prestes a se romper em Brumadinho, mais de 150 mortes poderiam ter sido evitadas, apontam cálculos de um documento interno da mineradora feito em 2018, que colocava a represa da tragédia e outras nove em "zona de atenção". No relatório chamado de Gestão de Riscos Geotécnicos, que é realizado anualmente, a Vale discute uma série de riscos, incluindo o de perdas humanas em eventuais rompimentos de suas barragens — um procedimento obrigatório e normal para esse tipo de análise. Em relação a um eventual desastre em Brumadinho, a mineradora estimava, no documento, a perda de 100 a 1.000 vidas em caso de sinistro sem que houvesse alerta. Com a advertência à população do entorno, a quantidade de vítimas em caso rompimento cairia a menos de dez. Na tragédia em Minas, a Vale admite que o sistema de sirenes não funcionou. Até a última segunda-feira, 165 mortes foram confirmadas pelo Corpo de Bombeiros no tsunami de lama. Há ainda 155 pessoas desaparecidas.
A reportagem procurou a Vale, que não respondeu às perguntas específicas da reportagem sobre os procedimentos de alerta. A empresa disse apenas que a Barragem I "estava dentro do limite de risco parametrizado de acordo com o conceito de ALARP (zona de atenção), mundialmente reconhecido", que "as causas do rompimento ainda estão sendo investigadas".
O relatório de Gestão de Riscos Geotécnicos de 2018 está apensado em um processo judicial de 297 páginas que determinou a paralisação parcial e temporária de atividades em oito barragens da Vale por supostos riscos de rompimento em Minas Gerais. O documento, cuja íntegra foi divulgada nesta terça-feira pelo Ministério Público mineiro, também indica que a Vale já reconhecia, meses antes da tragédia, que a barragem que rompeu em Brumadinho requeria medidas de segurança adicionais e que, além das duas estruturas que ruíram na cidade, outras oito barragens da mineradora estavam na "zona de atenção" por risco de rompimento, conforme havia adiantado o EL PAÍS em reportagem publicada no último sábado. A mineradora, que não havia respondido à reportagem sobre o tema na sexta-feira, diz que "não existe em nenhum relatório, laudo ou estudo conhecido qualquer menção a risco de colapso iminente" na represa que se rompeu. A nota frisa ainda que "nem a Diretoria Executiva, nem o Conselho de Administração precisam ser envolvidos em decisões relativas a situações emergenciais".
No documento interno da mineradora, não está claro qual é o procedimento específico do alerta a que se referem nem quanto tempo antes do rompimento ele teria que ser emitido para chegar ao cálculo de menos de dez mortes na estimativa de potenciais perdas de vida. No caso das barragens que romperam em Brumadinho no último dia 25 de janeiro, as sirenes que deveriam alertar às comunidades do entorno sobre o sinistro para que a rota de fuga fosse iniciada não soaram, conforme relatam moradores e admite a própria Vale. O presidente da mineradora, Fabio Schvartsman, chegou a afirmar que estes equipamentos teriam sido "engolfados" no deslizamento, mas a Folha de S. Paulo mostrou que eles estavam intactos mesmo após a tragédia.
No início deste mês, a empresa explicou em nota que as sirenes são acionadas manualmente a partir de um Centro de Controle de Emergências e Comunicação, com funcionamento 24 horas e localizado fora da área da mina. "Pelas informações iniciais, que estão sendo apuradas pelas autoridades, devido à velocidade com que ocorreu o evento, não foi possível acionar as sirenes relativas à Barragem I. As causas continuam sendo apuradas", afirmou a mineradora na nota.
Um estudo realizado pela Fundação Parque Tecnológico de Itaipu (FPTI) em convênio firmado com a Agência Nacional de Águas (ANA) pondera que a análise do potencial de perdas de vida decorrentes da ruptura de uma barragem é um "exercício bastante complexo" e deve considerar um "conjunto de incertezas". Ainda que não analise apenas barragens de rejeitos de mineração, o estudo dá uma dimensão da importância do sistema de prevenção em estruturas do tipo. "A estimativa do número de perdas de vida demanda estudos e análises que vão além da elaboração do mapa de inundação", aponta o estudo, citando como exemplos de fatores a se considerar o volume da barragem, o tempo de chegada da frente da onda de cheia e a altura máxima que ela pode alcançar em uma eventual ruptura. Por outro lado, também destaca que muitos trabalhos sobre a segurança de barragens determinam parâmetros de estimativa de perda de vidas com base na capacidade de autossalvamento das pessoas expostas ao risco, se avisadas a tempo.
Conforme a análise de casos e de literatura abordados para este estudo, quando o tempo de alerta é superior a noventa minutos, a taxa de autossalvamento é próxima de 100%. O estudo cita alguns casos como exemplo. Em Baldwin Hills, na Califórnia, uma ruptura de barragem na década de 1960 pôs em risco a vida de 16.500 pessoas que viviam no entorno. Com o aviso emitido uma hora e meia antes, foram contabilizadas cinco mortes. Em Kansas River, também nos Estados Unidos, o alerta foi dado mais de uma hora e meia antes da ruptura da barragem que colocava em risco 58.000 pessoas na década de 1950. Este incidente contabilizou 11 mortos. Em Prospect Dam, na Austrália, este alerta veio cinco horas antes da ruptura que ocorreu nos anos 1980, e as 100 pessoas em risco conseguiram se salvar.
Os riscos de colapso da Barragem I
No processo judicial divulgado pelo MP de Minas, estão apensados os relatórios de Gestão de Riscos Geotécnicos da Vale realizados em 2017 e em 2018. Na análise de riscos de 2017, o documento da empresa já admitia que a Barragem I da Mina do Feijão, em Brumadinho, tinha uma chance de colapso duas vezes maior que o nível máximo de "risco individual tolerável". Nos gráficos contidos neste documento, se observa que a barragem I estava bem no limite do início da "zona de atenção", mas ainda assim não foi posta em alerta naquele ano. Só entrou nesta lista de atenção meses antes de ruir, após um estudo finalizado em junho do ano passado em 57 barragens de mineração da empresa.
Em nota enviada à agência Reuters, a mineradora nega que tivesse qualquer conhecimento de "risco iminente" de rompimento da barragem. A empresa explica que o relatório de Gestão de Riscos Geotécnicos compreende as opiniões de engenheiros especialistas, que são obrigados a trabalhar dentro de procedimentos rigorosos quando identificam quaisquer riscos. “Não existe em nenhum relatório, laudo ou estudo conhecido qualquer menção a risco de colapso iminente da Barragem I da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho”, disse a Vale em uma nota por e-mail à Reuters.
A barragem I da mina do Feijão tinha todos os laudos de estabilidade atestados por empresas independentes contratadas pela Vale e estava em dia com a documentação de monitoramento que é obrigada por lei a enviar para a Agência Nacional de Mineração (ANM). Os últimos laudos foram assinados pela empresa alemã TÜV-SÜD, que apontou problemas na drenagem e na erosão da barragem que rompeu e fez recomendações que incluíam a aquisição de um novo radar para monitorar deslocamentos em frente à barragem e de mais medidores de pressão de água na estrutura. Apesar de detectarem os problemas, os engenheiros da empresa atestaram a segurança da barragem.
Em depoimento à Polícia Federal ao qual o G1 teve acesso, o engenheiro Makoto Namba (um dos responsáveis pela inspeção da barragem de Brumadinho) afirmou ter se sentido pressionado pela Vale para dar um laudo que garantia a estabilidade da barragem. Namba também disse ter apresentado sugestões à Vale ainda durante as inspeções para aumentar a estabilidade da barragem, mas a mineradora teria recusado. As burocracias do processo e a discussão sobre qual solução implementar teriam atrasado o processo. O geólogo Grandchamp, funcionário da Vale, confirmou no seu depoimento à PF ter rejeitado o modelo de drenagem inicialmente proposto pela TÜV SÜD. Depois, a empresa propôs um outro modelo, que ele aceitou, embora não conhecesse. Por isso, afirmou que solicitou a diversos fornecedores de tecnologias diferentes "soluções para viabilizar a drenagem da barragem". Segundo ele, a mineradora recebeu ofertas de sete empresas e que "referidas propostas só vieram a conhecimento do declarante apenas no início de janeiro/2019".
Vale fez mudanças para retirar outras barragens de zona de atenção
A mineradora tem insistido que não havia nada que apontasse "risco iminente" em Brumandinho ou outras barragens, mas o próprio relatório Gestão de Riscos Geotécnicos de 2017 registra que a mineradora fez mudanças para retirar represas tanto da chamada "zona de atenção" como da classificação de maior risco. O documento também diz que as barragens estão sob essa classificação porque precisam de controle de mitigação. Naquele ano, 23 barragens foram analisadas. Duas delas (Pera e B3) foram consideradas acima do risco, e a Vale tomou as medidas e as retirou dessa situação. Outras quatro foram colocadas dentro da zona de atenção: as barragens 8B, Sul, Rio do Peixe e Forquilha III. O documento aponta que as três primeiras tiveram ações para reduzir os riscos enquanto apenas a Forquilha III estava com esses procedimentos ainda em andamento na época da circulação do relatório.
Já em 2018, 10 das 57 barragens analisadas foram classificadas na "zona de atenção" pelos riscos de rompimento. Apenas a Forquilha III já estava em alerta no relatório anterior –ela agora está desativada. Das outras nove, duas romperam no último dia 25 de janeiro em Brumadinho (ambas já desativadas antes da tragédia). Questionada pelo EL PAÍS, a mineradora não respondeu se as oito barragens ainda de pé estão em dia com a documentação de fiscalização e monitoramento que é obrigada por lei a enviar para a Agência Nacional de Mineração (ANM). Quase todas elas são consideradas como barragens de baixo risco de acidente, mas alto dano em caso de um eventual rompimento — uma classificação que tem perdido credibilidade diante dos desastres dos últimos anos em Mariana (2015) e Brumadinho (2019).
As oito barragens da Vale em alerta estão com parte das atividades paralisadas por decisão judicial. No dia 1º de fevereiro, a Justiça determinou que a Vale se abstenha de lançar rejeitos ou praticar qualquer atividade potencialmente capaz de aumentar os riscos das barragens Laranjeiras, Menezes II, Capitão do Mato, Dique B, Taquaras, Forquilha I, Forquilha II e Forquilha III. As três últimas foram inseridas no plano de descomissionamento (esvaziamento da barragem) da empresa, que decidiu, após Brumadinho, desativar em até três anos represas similares, construídas sob o método à montante, considerado mais econômico e menos seguro.
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