sábado, 9 de marzo de 2019

Querer matar o Carnaval é um atentado à alma do Brasil | Opinião | EL PAÍS Brasil

Querer matar o Carnaval é um atentado à alma do Brasil | Opinião | EL PAÍS Brasil

COLUNA 

Querer matar o Carnaval é um atentado à alma do Brasil

Diante do que já foram os carnavais medievais na Igreja, os de hoje poderiam ser considerados até excessivamente castos

O presidente Jair Bolsonaro.
O presidente Jair Bolsonaro.  AFP
O presidente brasileiro, o capitão aposentado Jair Bolsonaro, é um cristão praticante que quando sai do carro e encontra um grupo de seguidores os convida a fazer uma oração ali mesmo. Seu lema é “Deus acima de todos”. Durante o Carnaval, uma vez mais o Brasil colocou na rua milhões de pessoas de todas as idades e condições sociais, em um clima de festa que o Nobel de Literatura, Vargas Llosa, descreveu neste jornal anos atrás, depois de ter participado no Rio com toda a sua família, como o “maior espetáculo sexual de massa”.
O presidente Bolsonaro, no entanto, ficou escandalizado este ano com algumas cenas escatológicas protagonizadas por dois homens no Carnaval de São Paulo. E colocou em seu Twitter o vídeo com a cena para execrá-la. Foi acusado em seguida de ter colocado um “vídeo pornográfico” na rede. A notícia correu o mundo. E como se não bastasse, ainda em estado de excitação e indignação, o presidente perguntou na rede se as pessoas sabiam o que era “golden shower”, o fetiche de urinar no parceiro ou na parceira por prazer sexual, ao qual a cena de vídeo se referia. Sua indignação foi vista como uma condenação do Carnaval que para os brasileiros é a maior manifestação festiva de massa de sua história, uma metáfora de sua idiossincrasia cultural como escreveu em suas obras magistrais o maior antropólogo brasileiro, Roberto DaMatta.
Na biografia de Bolsonaro constam episódios escabrosos relacionados ao sexo e à sua fobia de gays e mulheres, como quando disse à colega deputada Maria do Rosário, em pleno Congresso, que “não a estuprava porque não merecia”, referindo-se à sua aparência física, ou quando explicou que de seus cinco filhos a única que nasceu mulher foi porque “deu uma fraquejada”. Sua sexualidade ainda não parece pacificada e ele a projeta em símbolos fálicos de armas.
A indignação do presidente com alguns excessos de tipo erótico do Carnaval como festa orgástica teria sido menor se ele soubesse, por exemplo, o que foram o Risus Paschalis na Igreja Católica e as falofórias antigas realizadas em uma espécie de carnaval sagrado, obsceno e pagão em homenagem à deusa Maromba. As mulheres saíam com grossos falos artificiais presos no quadril, que exibiam eretos nas festas agrícolas. As sacerdotisas acabavam celebrando orgias, se masturbando e realizando atos lésbicos.
Duas importantes historiadoras e antropólogas, María C. Jacobelli e Francisca Martín Cano Abreu, estudaram os ritos pagãos antigos para relacioná-los com o Risus Paschalis, realizado nas igrejas católicas do século IX até o século XIX. A Igreja acabou herdando parte desses ritos relacionados com a exaltação lasciva da sexualidade e eram praticados por sacerdotes dentro da Igreja, durante a missa, especialmente no período da Páscoa, depois da longa e dura quaresma. Foi chamado de Risus Paschalis porque sua função, como em um carnaval religioso, era promover a hilaridade nos fiéis que compareciam à missa.
O que os sacerdotes faziam durante o sermão para fazer rir e divertir os fiéis, hoje escandalizaria o Bolsonaro católico e evangélico. E isso acontecia, praticamente, em toda a Europa. O site Edad Media, que estuda a cultura daquela época, descreve assim o risus paschalis: “Esse costume histórico assumia que o sexo estava presente em plena missa”. Era uma forma bizarra e desinibida de manifestar o prazer sexual no espaço sagrado. Durante a missa, o sacerdote devia provocar a alegria da Páscoa até fazer os fieis rirem e para isso podia fazer gestos indecentes e obscenos como mostrar o pênis e imitar o ato sexual ou se masturbar. Bem como contar piadas obscenas, arrancando gargalhadas dos fiéis. Em alguns casos, o ato sexual era realizado ao vivo, durante a missa, embora tenha sido proibido pelos bispos. Eles consideraram que era demais. A piada devia se limitar à gestualidade e no máximo à masturbação.
E o sexo não somente era presente e real nas igrejas e até durante a missa nas grandes festividades litúrgicas, especialmente na Páscoa, como foi plasmado nas mais famosas igrejas românicas na Europa. No século XIV, por exemplo, existia o costume de pintar e esculpir cenas obscenas nas paredes e nos coros das igrejas. Algumas dessas cenas são abertamente eróticas, sem falar que algumas aludem ao sexo com animais.
Até na culta e renascentista Itália é possível encontrar pinturas de forte conteúdo erótico e lascivo como na Igreja de Santa Maria Novella, em Gubbio, onde há pinturas que não deixam nada a dever ao Kama Sutra. Em Todi, na igreja de São Francisco, existe um famoso portal no qual está representado um ato sexual entre um sacerdote e uma freira. E na catedral de Trasacco, na província de Áquila, para distinguir a porta dos homens daquela das mulheres aparecem esculpidos em cada uma delas os órgãos genitais masculinos ou femininos.
A prática do Risus Paschalis acabou sendo proibida pelo Concílio de Trento, no século XVI, embora, de acordo com fontes históricas, em algumas igrejas, especialmente na Alemanha, ainda havia vestígios de tais jogos eróticos nas igrejas até o século XIX. Mas se a Igreja oficial acabou com o Risus Paschalis, deixou viva até hoje nas pinturas de suas igrejas a força que o sexo teve durante séculos e até em suas formas mais eróticas e lascivas dentro do catolicismo. Não os destruiu.
Diante disso, e sendo professora a história, Bolsonaro não deveria sofrer com certos excessos eróticos do seu Carnaval. Diante do que já foram os carnavais medievais na Igreja, os de hoje no Brasil poderiam ser considerados até excessivamente castos. Ou não, presidente? Quando o senhor se sentir tentado novamente a exibir, para condená-los, alguns vídeos do Carnaval, lembre-se das falofórias e do Risus Paschalis. Aliviarão sua consciência e no próximo ano o senhor se animará a sambar sem medo.
Não sou brasileiro, mas querer matar o Carnaval, que neste ano manteve viva sua força de resistência contra as tentações autoritárias e inquisitoriais, me parece um atentado à alma deste país. Como escreveu a poeta Roseana Murray, o povo brasileiro é capaz de reunir sua índole festiva com o protesto dos cidadãos. Sabe mostrar suas garras rindo e dançando ao mesmo tempo. Este também é o Brasil. Quer goste ou não o nosso novo presidente.

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