COLUNA
Bolso Mirror
A exemplo do filme 'Bandersnatch', cria do seriado 'Black Mirror', o eleitor escolhe que roteiro seguir
Bolsonaro na posse do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva. JOÉDSON ALVES EFE
A primeira semana do governo de extrema direita foi uma sessão de horror. Com várias opções de enredo para a livre escolha do distinto público. No episódio protagonizado pelo ministro Ernesto Araújo (Relações Exteriores), o espectador da aldeia globalista foi provocado a escolher, mesmo com chance zero de alterar a narrativa: The New York Times ou José de Alencar? CNN ou Raul Seixas?
Deus ou o Diabo na Terra do Sol? Sebastianismo ou marxismo? Tudo como se fosse apenas a primeira pergunta do Bandersnatch (Netflix): sucrilho ou cereal?
Segura o controle remoto, nobre patriota, que o seriado está apenas começando. A ministra Damares Alves (Família) não ofereceu alternativas: menino veste azul, menina veste rosa. E “play” na fita.
Há quem desconfie que a pauta moral da pastora seja cortina de fumaça para encobrir as bombas da economia, educação, agricultura, meio ambiente etc.
Enquanto os botecos da esquina e das redes sociais pegam fogo em discussões sobre modos de homem & modinhas de fêmea, a caneta Bic ou Compactor do Messias assina medidas que protegem apenas os portadores de Montblanc e arrocha ainda mais os desprotegidos, “feios, sujos e malvados”.
Igualdade de gêneros ou menos oito reais no salário mínimo? Não deixa de ser outra pergunta para o cidadão-telespectador do seriado em cartaz. Em um país tropical esquecido por Deus — recordista em assassinatos de gays e feminicídios provocados por homens que sempre se vestiram de azul —, vejo as duas pautas como importantíssimas. Deixo o filme correr solto.
Assim como na distopia geral de Black Mirror, alguns de nós vivemos a ilusão de donos do controle remoto da fábula. Mas que nada. Como se um post lacrador ou um meme de escárnio fosse capaz de frear o horror, o horror.
Messias no comando, auxiliado por gentes e robôs, segue firme no combate ao “socialismo” da nação cujos deuses são os banqueiros, latifundiários, pastores universais da infâmia e coronéis eletrônicos da tevê. Maldito comunismo tropicaliente: quase 30% da renda do Brasil está nas mãos de apenas 1% dos habitantes do país, a maior concentração do tipo no mundo — é o que indica a Pesquisa Desigualdade Mundial 2018, coordenada, entre outros, pelo economista francês Thomas Piketty, conforme revelou o EL PAÍS Brasil.
Tempo de contribuição ou idade mínima para a aposentadoria? Com ou sem Justiça do Trabalho? Índio ou madeireiro na Amazônia? Terra redonda ou plana?
São tantas indagações que o filme não anda. Escolha o seu rumo na história. No GPS da vida real pós-eleições não costumamos encontrar postos Ipiranga em qualquer esquina. Nem para abastecer o carro do motorista Queiroz, condutor dos gabinetes da família oficial.
Sorria, você perdeu o controle das ações.
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Big Jato” (editora Companhia das Letras), entre outros livros
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