‘O Mecanismo’ e o desafio de contar um escândalo que ainda não terminou
Segunda temporada do thriller estreia um dia após nova prisão na Lava Jato.
Padilha: "STF é a corte mais lenta do mundo para julgar políticos e pessoas com foro"
São Paulo
Cena da segunda temporada de 'O Mecanismo'. DIVULGAÇÃO
Existem várias maneiras de acompanhar um dos maiores casos de corrupção do mundo. É possível se informar pela imprensa tradicional sobre a investigação que abalou os alicerces de boa parte da política latino-americana, com suas tramas, subtramas, episódios dramáticos e giros inesperados. E, pelo menos no Brasil, com os tuítes de alguns dos protagonistas. É um cipoal difícil de seguir detalhadamente para quem não é especialista. Mas também é possível acompanhar a versão condensada, dramatizada e ficcionalizada, a série O Mecanismo, que o premiado cineasta José Padilha dirigiu para a Netflix. A estreia da segunda temporada desse thriller, nesta sexta-feira, praticamente coincidiu com uma dessas detenções recentemente impensáveis, mas que viraram rotina. Desde esta quinta, o Brasil volta a ter dois ex-presidentes atrás das grades, Luis Inácio Lula da Silva e Michel Temer, que esteve no cargo até em 31 de dezembro e já havia sido detido anteriormente neste ano. Mandatários de partidos diferentes, o que é uma das chaves do assunto, segundo o diretor.
A corrupção como lubrificante do sistema. "Minha tese é de que a nossa roubalheira é sistêmica, acontece a despeito do partido que toma o poder, e não tem ideologia. Acontece na esquerda e na direita”, afirma Padilha numa entrevista por escrito. É o diretor que familiarizou a plateia mundial com a polícia carioca em Tropa de Elite. “Basicamente, defendo a tese de que o funcionamento democrático brasileiro, desde a sua origem, com Sarney e depois Collor, pressupõe a corrupção, a troca de quinhões de recursos públicos por recursos de campanha, e o enriquecimento ilícito de grandes fornecedores do governo, empreiteiras e grandes bancos comerciais, e de políticos de PMDB, PSDB e PT”. É um mecanismo bem azeitado, daí o título da série.
Todos os ex-presidentes vivos, exceto Fernando Henrique Cardoso, foram investigados no escândalo de subornos que emana da Petrobras e causou um terremoto político no Brasil e no Peru, com réplicas nas últimas semanas e dias.
A nova temporada leva o espectador a vários anos atrás. Para quando o Brasil tinha uma presidenta que depois seria destituída — no que para Padilha foi “um golpe” —, e o juiz que dirigia as investigações era apenas um cruzado anticorrupção (hoje é o ministro da Justiça de Bolsonaro). Em O Mecanismo, o policial aposentado Ruffo é a alma de uma investigação comandada nas ruas pela delegada Verena contra os homens mais poderosos da política e dos negócios do país, sem perder de vista Ibrahim, um aparente coadjuvante com um papel-chave no mecanismo que corrompe as vísceras do Estado. Eles compartilham com o fictício Ricardo Brecht o protagonismo destes oito novos capítulos. O verdadeiro Marcelo Odebrecht, empresário dono da maior empreiteira latino-americana, subornou a boa parte da classe política da região.
Criar uma série de semificção sobre um caso judicial tão vivo é um desafio que Padilha assumiu ao parir a série, baseada num livro de Vladimir Netto. “A Lava Jato vai ficar aberta por muito tempo. Sobretudo os casos brasileiros que foram parar no STF, a corte mais lenta do mundo para julgar políticos e pessoas com foro privilegiado acusadas de corrupção… De modo que não havia a possibilidade de esperar a conclusão das investigações.” O caso se chama Lava Jato porque o primeiro fio dessa meada puxado pela polícia foi um posto de gasolina com lavagem de veículos em Brasília.
Qualquer um que estiver familiarizado com o caso judicial reconhece imediatamente os principais protagonistas reais em seus personagens de ficção, e o grau de escrutínio de cada detalhe e de cada frase é absoluto para o público brasileiro. Nestes tempos de desinformação, é importante para os implicados deixar claro o que é real e o que é ficção. A primeira temporada foi muito duramente criticada pelo PT e apontado como parte da caça às bruxas contra Lula, que ameaçou levar a Netflix aos tribunais.
O diretor salienta que não se arrepende da forma como vem retratando o juiz Sergio Moro, que em janeiro passado deixou a toga para entrar no Governo Bolsonaro como ministro da Justiça. “Moro é retratado de maneira fiel ao que fez na época em que foi retratado”, afirma, para citar outro exemplo: “Quem votou no Lula sindicalista, votou no sujeito que governou com Temer e participou do Mensalão e do Petrolão? Certamente não. A esta altura Lula ainda não tinha cometido os crimes”.
O caso real levou à reclusão de Lula e Temer, à prisão domiciliar do empresário Odebrecht e, no episódio real mais dramático, ao suicídio do ex-presidente peruano Alan García. Para milhões de latino-americanos, resultou em uma enorme desconfiança de toda a classe política.
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