JUAN ARIAS COLUNA
Os muros de pedra e os muros invisíveis
Muros foram sempre um símbolo do medo. Atualmente os muros invisíveis são ainda mais graves, porque nos separam espiritualmente
Eleitor de Haddad oferece flor a eleitor de Bolsonaro, no dia do segundo turno. NACHO DOCE REUTERS
Numa noite de 9 de novembro, há 29 anos, o mundo despertou com a alegre notícia de que o Muro de Berlim, de 130 quilômetros, conhecido como “muro da vergonha”, tinha começado a ser derrubado, permitindo que as duas metades da cidade dividida voltassem a se abraçar. Se as muralhas de pedra, da chinesa até as de hoje, passando pela romana de Adriano, foram sempre um símbolo do medo em relação ao inimigo, atualmente os muros invisíveis são ainda mais graves, porque também nos separam espiritualmente.
Os muros de pedra e cimento que continuam sendo erguidos no mundo revelam a incapacidade de saber viver fisicamente em liberdade, enquanto os muros invisíveis das ideologias que nos separam, às vezes até mesmo entre amigos e familiares, são construídos com a incapacidade de dialogar e de aceitar quem é diferente.
Se os muros físicos simbolizam a incapacidade de resolver as diferenças usando os instrumentos das democracias modernas, os muros invisíveis que erguemos por não saber ler a angústia e as razões do outro podem nos conduzir a rupturas mais profundas e mais difíceis de consertar.
Hoje, mais perigosos do que os muros físicos são os muros invisíveis que dividem as classes sociais, que separam os privilegiados do asfalto das periferias dos excluídos, os que possuem tudo daqueles que não têm um mínimo para viver com dignidade. São também os muros invisíveis que se tentam levantar, por exemplo, nas escolas e universidades entre alunos e professores. Já não se trata da antiga luta de classes que separava os trabalhadores dos patrões, e sim da que divide uma sociedade onde estão desaparecendo os limites entre liberdade e barbárie, entre grosseria e cultura, entre quem não abre mão de pensar e quem preferiria nos impor um pensamento único.
Não há muro pior do que o levantado entre o saber e a ignorância, que separa os satisfeitos dos desesperados, os que se sentem donos da verdade daqueles que a buscam as tropeções, conscientes de que ela não existe em estado puro. Existem só fragmentos dela, que o pensamento e o coração de cada um vão montando para desenhar seus sonhos. E querem que lhes deixem fazer isso livremente, sem dogmas ideológicos ou religiosos.
Derrubado o Muro de Berlim naquele 9 de novembro de 1989, enquanto a liberdade corria pelas ruas e praças da cidade, centenas de artistas anônimos se juntaram para criar, nos pedaços do muro ainda em pé, a maior tela de pintura do mundo como expressão da grande festa da liberdade.
Não era fácil ultrapassar aquele muro de cimento nem mesmo com permissões oficiais. Consegui atravessá-lo seis meses antes que fosse derrubado. Lembro-me da incômoda liturgia a que fui submetido antes de poder passar de carro para o outro lado. Pude ver de perto o horror daquelas cercas eletrificadas e as mandíbulas ferozes dos cães policiais. Mais tarde eu soube, com dor, que aqueles animais adestrados para matar, testemunhas dia e noite de tantos medos, desapareceram sem que se soubesse seu paradeiro. Tudo ali, enquanto existia o muro, estava coberto pelo luto da segregação. Aberta a primeira brecha de liberdade, centenas de artistas voluntários chegaram para revestir os pedaços do muro com as cores da felicidade.
Quando os espaços para que possamos nos expressar são fechados, está sendo morto o que o Homo sapiens tem de mais nobre, sua capacidade de criar e inventar. É bom lembrar disso nestes tempos de ansiedade e perplexidade que sacodem o Brasil, que se esforça para não perder valores e liberdades que custaria tanto recuperar.
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