A atual
mobilização dos caminhoneiros é mais um exemplo do esgotamento do pacto social e do modelo distributivo no Brasil. É verdade que a crise de legitimidade do poder público está disseminada por toda parte, em países desenvolvidos ou não. Eleitores em todo o mundo, a começar pelos
EUA , expressaram sua insatisfação no voto ‘anti-establishment’, enquanto a França testemunhou, recentemente, a ação de ‘black blocs’ tão violentos quanto seus contrapartes no Brasil.
A
crise brasileira , entretanto, guarda uma peculiaridade: não é apenas a viabilidade do sistema político, com suas já conhecidas falhas, que está em jogo, mas também a relação do Estado com a sociedade e sua dependência de corporações públicas e privadas. Na ausência de um mínimo consenso em torno de um modelo e de uma ideologia a orientarem o país e a darem-lhe um sentido de unidade, o Estado acaba sendo tomado por interesses corporativos de toda sorte.
Ao longo da história recente, o Estado brasileiro sucumbiu aos mais segmentados interesses a fim de que seus governantes se assegurassem de uma mínima estabilidade institucional e de um ambiente de “normalidade democrática”. O problema é que o atendimento de pleitos de segmentos públicos ou privados específicos – porém poderosos – fizeram-se às custas da classe média e das camadas mais
pobres da população, as que mais pagam impostos no Brasil , como vários estudos recentes têm demonstrado.
A captura do Estado por interesses privados (e aqui incluo não apenas empresas e bancos, mas também determinadas categorias da elite do setor público) é estrutural e nunca foi colocada em risco por nenhum governo brasileiro, à esquerda ou à direita. Ao contrário, contaram com o endosso de líderes políticos de todas as colorações, testemunhas passageiras de um sistema que já perdura por séculos como verdadeiro sustentáculo do Brasil unificado e “pacífico”.
Enquanto o bolo orçamentário cresceu e a pirâmide etária da população permitiu – isto é, em praticamente todo o século XX – o Estado foi capaz de alimentar não apenas seus estamentos burocráticos (termo retomado pelo brilhante Francisco Gaetani
em artigo recente no jornal Valor Econômico ) como também os setores privados que dele sempre dependeram. Entretanto, a realidade imposta hoje é outra: diante da necessidade de capacitar uma população em grande medida pobre a encarar a era digital e os modernos desafios da ciência e tecnologia, do desenvolvimento sustentável e da qualidade de vida numa economia de mercado competitiva, o Estado brasileiro mostrou-se ainda atrelado ao velho sistema de interesses corporativistas.
Incapazes de propor um novo pacto social que combata os históricos privilégios previdenciários e tributários, mas cientes do novo contexto global, os governos veem-se diante de duas saídas pouco republicanas: ou privatizar a preços módicos e despir o Estado de mínima capacidade de planejamento estratégico, sem necessariamente combater os interesses do estamento (ao contrário da fantasia dos ditos "liberais"); ou aproveitar o mega-boom cíclico de bens primários que permita criar uma sensação ilusória de bem-estar generalizado, agraciando os pobres com migalhas, mas comprando o apoio dos ricos com fortunas.
Tais soluções, levadas a cabo pelos partidos que governaram o país nos últimos anos, variaram apenas segundo conjunturas internas e externas passageiras. Hoje sabemos que foram ilusórias e curto-prazistas, pois não criaram capacidade real de arrecadação tributária, nem propuseram rediscutir a histórica estrutura "à la Robin Hood" das despesas públicas. O Estado vê sua capacidade de prestar serviços básicos minguar, e o corporativismo exerce sua pressão para abocanhar a parte do bolo que ainda resta, sob pena de colocar fogo num país que lhe é refém. "Farinha pouca, meu pirão primeiro", dizem no Brasil.
Infelizmente, a verdadeira promoção do bem-estar social e da cidadania no Brasil nunca se poderá dar nesses termos. Dependerá de um Estado disposto a resistir a pressões corporativistas internas e externas a ele, com foco em proteger o interesse público.
Guilherme Quintão , cientista político e diplomata. As opiniões emitidas no texto são de inteira responsabilidade do autor, não coincidindo necessariamente com posições do Ministério das Relações Exteriores.
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